Não sei se me apetece...
Já cheira a Outono por aqui, o vento sopra baixinho,
apetecia apenas encostar-me e ficar assim. Gosto
deste sofá, já está habituado a mim. Tem o meu
cheiro e o meu jeito. É perfeito para estar longe do
mundo, basta fechar os olhos e tudo se apaga num
segundo. É o meu sofá. É o meu canto. A minha concha.
Os braços que me embalam e me aquecem, as costas
que me apoiam e nunca desaparecem. É meu. Tem a
minha forma. Somos o complemento um do outro.
Acolhendo-me torna-se útil, acolhendo-me dá-me conforto.
Fazemos parte um do outro.
Há gente assim,
que se agarra a coisas, que mais ninguém entende,
como um velho sofá, onde se enrosca e se estende.
Há gente assim, que valoriza menos o que vê e mais o que sente.
Há gente assim, que perante um mundo louco, que cerca e aperta
procura um velho sofá onde se enrosca, e fica mais segura de
repente. E há gente assim. Como o meu sofá. Quer passem dias,
passem horas, passem anos, batemos à porta e estão lá. Há gente
assim, que no meio do mundo, que rodopia louca e surdo, abre os
braços como o meu sofá. Não faz perguntas, não quer respostas,
abre os braços e cabemos lá. Como marcos, num caminho,
mas feitos de compreensão e carinho.
Há gente assim. Mas não são muitos. Não são os reis das festas,
não são os reis de tudo. Não se notam no meio do mundo.
São as mãos silenciosas que nos puxam nas subidas. Que nos
evitam as quedas. Os olhos que encontramos quando perscrutamos
estrelas. Os sons do vento que nos toca devagar, que seca lágrimas
e nos dirige o olhar. São os sorrisos em silêncio. As chávenas
de chá de madrugada, as camisolas de lã e as torradas. São os
quilómetros que nos separam em segundos, a certeza do passado,
reafirmada agora, projectada no futuro. Há gente que estará sempre
dentro de nós, por mais que tudo o resto mude, e é assim porque
estar assim é ser completo, e não metade do mesmo objecto.
E depois há gente assim, que vamos encontrando na estrada,
entre a chuva e a trovoada. Gente de sorriso em punho. E de gritos
sentidos e profundos. Que também queremos gritar. Que parece
conhecer-nos. Viver no mesmo lugar. Naquele onde se encontram
vidas e preenchem espaços. Onde se desenham palavras e
fabricam abraços. E se tenta enganar a dor. Gente igual a nós,
o mesmo molde, noutra cor. A caminhar nas arestas do cubo.
Em per pétua busca de equilíbrio, fazendo dos braços dum sofá
imaginário, o mundo fora do mundo, em que o verbo ser não
é adjectivado. Há sim, há gente assim. Que não tem medo de nada
e morre de medo de tudo, que busca e busca e não encontra nada,
porque não quer senão tudo.
E esse tudo nada é senão um velho e gasto sofá de veludo.