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Ainda não se viam luzes na cidade, as sombras da noite apagavam-lhe o caminho.
Mário seguia a ritmo certo, a passo lento e balançado. Afastava-se dos obstáculos com graça e cuidado. O armazém ficava longe, num bosque isolado, entre a única estrada alcatroada e as margens do lago, agora gelado. Abriu as portas e aspirou o ar daquele ginásio. Era naquela sala que trabalhava, incansavelmente, sem horas, sem pausas, sem dias. Era nesta sala e hoje, que a sua vida mudaria. Mas isso, ele ainda não sabia.
- Mário, pára um pouco, chega cá abaixo. Mário!
Vincenzo, pai de Mário, tinha já perto de 70 anos. Nem uma ruga. A pele clara, os olhos azuis e brilhantes, passos lentos e firmes de gato.
- Desce, trago-te uma visita!
Mário libertou-se das correias de segurança, prendeu os trapézios, desceu devagar.
Abraçou o pai ternamente, perguntado como estava, sentindo de novo um enorme carinho por este homem que tanto admirava.
- Mário, sei que treinas sem descanso, rigorosamente. Também sei que, treinar sem parceiro não é treinar, É fazer uso de força, gastar tempo, transpirar. Não sei se chego a tempo, filho, não sei se o Marco irá prestar, mas, por favor, antes de dizer que não, deixa o miúdo experimentar.
Encarou altivamente os olhos azuis, não queria treinar um novo parceiro. Não queria mais horas perdidas, mais entorses, lágrimas, mais recriminações e despedidas. A época estava a começar, o espectáculo alinhado para um só…
Não foi capaz de dizer que não. No ar está-se sempre só, em voos de longo curso, de brilhos e exclamações de receio, não há rede mais segura que a mão dum parceiro.
- Não lhe dou sequer dois dias. Mas pode ficar.
- Marco! Entra Marco! Vem conhecer o Mário.
Entrou um Marco tímido, de cabeça baixa, escondido entre negros cabelos encaracolados. Levantou os olhos devagar e….rufaram tambores em qualquer lado, sentaram-se orquestras na sala, invadiram a floresta músicos alados.
E um Mário de garganta seca e olhar turvado, estendeu a mão a Marco, que a apertou com cuidado.
Não se desprendiam olhares, não se ouvia um som e Vincenzo saiu devagar, um sorriso nos olhos e uma prece nos lábios.
Passaram algumas semanas e a estreia estava próxima, o circo montado de cores garridas, os altifalantes anunciando horários e sessões. As roulottes formavam um círculo, nesse centro juntavam-se à noite em conversas, jogos e treinos, trocavam conhecimentos e apuravam truques. A trupe era completamente nómada, não era um circo que fizesse largas temporadas em cada lugar, alguns artistas também actuavam noutros espectáculos conjugando interesses mútuos. Mário e Marco já voavam nos trapézios em sintonia, Marco caíra algumas vezes e magoara-se mas nunca desistira o que fez com que Mário o respeitasse cada vez mais, o sorriso foi-se abrindo e a empatia necessária surgiu, soubera pouco depois que Francesca era irmã de Marco, Vincenzo contactara-a para ser apresentadora do espectáculo, era bela e jovem mas não gostava muito de palavras.
A noite de estreia chegara, brilhos de cor, foguetes no ar, rebuliço imenso tudo a preparar sem tempo, os ilusionistas de negro em contraste com a assistente de púrpura os verdes e azuis dos lenços, os palhaços divertidos ainda sem nariz vermelho, os acrobatas que ponderavam a sincronia perfeita uma última vez, o Chapiteau azul e verde com cadeiras vermelhas montado pelos equilibristas já vestidos de cores ofuscantes para serem vistos ao pormenor de baixo.
Na noite anterior os trapézios tinham sido verificados, a segurança era algo que Vincenzo não descurava, de manhã tinha voltado a pedir para verificarem as cordas, os arames, a rede que. Mário dera indicações para a rede não ser usada e isso ser anunciado apenas quando os dois subissem aos trapézios.
Andreza a equilibrista que mais arriscava no arame ficou surpresa com o que acontecia na escuridão, cá em baixo a plateia só veria as faixas fluorescentes do fato dela e o arame também fluorescente, seria algo fascinante, só agora a observar o efeito no escuro percebia como resultava. A hora aproximava-se, Vincenzo como anfitrião reuniu todos desejou-lhes um bom show, dirigiu-se para a entrada querendo certificar-se que a entrada decorria em ordem. Marco chegaria a quinze minutos de actuar, Vincenzo pedira-lhe um favor que não poderia confiar a mais ninguém, sentia-se velho e cansado, essa seria a noite do filho. Decorreu tudo como previsto, os acrobatas, os palhaços, os ilusionistas, os equilibristas, alguns outros participantes pontuais que cada sessão de circo era sempre diferente no Chapiteau, chegara a hora esperada há meses por Mário, Vicenzo estava nervoso e discutia com o filho – Marco não tinha ainda chegado – não queria dizer o real motivo da demora e Mário insistia em subir para o trapézio sozinho, Vincenzo enerva-se ao ver Mário fazer o número sozinho, nada estava a ser como ele tanto fantasiara. Mário voou num perfeccionismo indescrítivel, aclamado pelo público que vibrava,o pai sentia-se orgulhoso mas começara a pressentir que algo não estava bem. O número de Mário e Marco era o último, o circo nessa noite deveria acabar com Vincenzo entregando nas mãos de Mário o Chapiteau, e a possibilidade de ter sucesso e ganhar prestígio nesta temporada que agora começara.
Vincenzo acabara de receber uma chamada de Marco, este contara-lhe que não voltava e que o dinheiro que tinha levado para fechar negócio com o mais cobiçado trapezista também não voltaria nem seria entregue. Todos os contactos com Alberti – o trapezista – tinham sido forjados por Marco e um cúmplice. Vincenzo perguntou-lhe o porquê da traição quando ele e Mário tanto o ajudaram, Marco sabia que não existiriam receitas para garantir o circo sem aquele artista e sem aquele dinheiro mas limitou-se a responder a Vincenzo:
- A vida é um circo. Quem alto voa, sempre cai.
Gata & Ki, algures, num tempo qualquer.