À luz pálida das estrelas e da lua em decrescente, pensou que era engraçado como tudo tinha um tempo. Um ciclo para tudo e para tudo um ponto final. As árvores da avenida sussurravam segredos ao vento, e os passos dela ecoavam, como se se tratasse de um caminhante distante.
Trazia um casaco pendurado no braço, apesar da névoa fria a fazer tremer de vez em quando, e da pele por debaixo da seda fina pedir mais aconchego, trazia o casaco pendurado no braço. O vestido comprido reflectia o firmamento, projectando na avenida parcos brilhos cintilantes. Madeixas rebeldes de cabelo ondulado fugiam do sóbrio penteado, balouçando a cada passo diante dos olhos dela. Não as afastava. Seguia uma linha imaginária, traçada a tinta de dor de alma, alheia ao lento balouçar dos barcos, presa ao movimento constante da aliança que rodava no seu próprio dedo.
O vento fez rodopiar algumas folhas secas, que se prenderam ao vestido. Pensou que mesmo depois do fim, há ironias do destino. Lembrou-se de dançar ao vento com as folhas mortas em dias de tempestade. Com as tempestades de fora sabia lidar, com ritmo, com danças de folhas a rodopiar. Esta tempestade de dentro, que a mergulhava numa tranquilidade aparente e ao mesmo tempo a transformava num turbilhão já vinha fora de tempo, não trazia chuva nem vento, nem folhas a levantar-se do chão. Mas tudo tem o seu tempo…
Lembrou-se do calor de outra mão. De simetrias perfeitas, de cumplicidade. Lembrou-se de sorrisos. Lembrou-se de muitas palavras, muitas vezes repetidas. E de paz. Teve saudades. Não do calor ou do aconchego. Quebrado o laço, tudo tinha sabor de segredo e falsa verdade. Mas saudades da paz. Da certeza do silêncio. Do peso leve da solidão consciente face ao pesado fardo da certeza confirmada. Ninguém muda. E um tudo, muitas vezes , é mesmo nada. Suspirou e levantou a cabeça. Chegava o tempo da madrugada.
À luz intermitente do farol, deixou cair o casaco e a aliança polida, deu mais um passo e outro ainda. De olhos sempre postos no céu. Fundiu-se no branco da espuma, agradeceu o abraço da água profunda e sorriu. Fechou os olhos e, no fim do seu tempo, morreu.
Sem tempo sem horas, sem cordas nos relógios, sem varinhas de condão.Numa dimensão onde há histórias que são apenas isso,relatos de momentos passados, peças por encenar, que aguardam o actor ou a actriz certa,que se escondem nos recantos, nos abraçam e despertam.
Numa dimensão onde o medo retomou o seu lugar,na prateleira das certezas com que temos de lidar,onde o vento tem cores e a lua prateada se move à vontade entre estrelas cadentes e cometas,nas linhas da escrita dos contadores de histórias e dos poetas.
Onde o sol brilha de noite, se assim apetecer,os abraços têm sabores e as nuvens são neve a derreter, uma dimensão onde não há medidas nem limites,onde nada se perde ou se pode comprar e não há substituto para a palavra amar.
Há telas nas paredes, com lembranças do futuro,há balões que ainda voam ao milésimo furo,há estradas que nem começam nem acabam,e mãos que se fundem.Há no ar um vento quente, como um fim de tarde de verão.Há letras que se conjugam em paixão.
Também há silêncios, povoados de vidas noutro lugar, outras caras e sorrisos, outros olhos a brilhar.E há explosões.E acordes que se perdem no breu da noite que se avizinha,algures um saxofone que se sobrepõe às notas do piano em surdina.
Há alianças secretas, símbolos, cumplicidades,há na hora incerta, a certeza da verdade.Há sorrisos de crianças, vozes que se misturam, confettis e serpentinas e gatos pretos num muro.É algo como magia,sentir-te assim ao meu lado,entre colheradas de vidae lufadas de sorvete gelado.