...e o mar ali tão perto...
Maio 17, 2010
As janelas tornavam o dia mais frio e como que deixavam entrar o vento. Sentada ouvia os barulhos da rua. Tanto movimento, tantas mães, crianças, famílias! Carros, sirenes, comboios e até aviões.
(Como é que eu vim parar aqui?)
Luzes que se começavam a acender, nas outras janelas e nas ruas, faziam ainda mais triste e cinzenta a sua. Fechavam-se estores. Gente conversava na rua. No andar de cima arrastavam-se cadeiras, noutro lado qualquer eram banhos e correrias.
(Um dia sei de cor os horários de cada vizinho!)
A janela cinzenta e fria, o vento. Uma casa inteira. Vazia. Uma casa sem vida e sem marcas de vida, sem histórias e sem memória. Imagens, sim. Imagens, quadros, fotografias. Sem alma, sem cor, sem...
Olhava em volta sem saber realmente onde estava. Em que lugar, em que casa. Em que sofá, a olhar pela triste janela para a gente triste que se queixa e arrasta e de repente sentiu-se muito triste também, porque se estava a tornar como ela.
(lá no fundo sabia que nunca seria igual)
A rotina e despotismo das horas e dos dias, dos compromissos e dos “tens que” e dos “devias” também a obrigava a ser assim, trabalhadora duma colmeia onde tudo se destina unicamente a um só fim. Para cada uma delas, pessoas-abelhas, o mesmo. Chegar ao fim. Apenas. Ao fim do dia, da semana, do mês. De mais um ano. De uma vida. A entrar e a sair comandadas pelo relógio, em caixas de metal e vidro, dormir em paredes de papel. Amaldiçoar a chuva e o sol, as filas, as esperas, desdizer a vida e desfazê-la a cada desdita!
(e o mar ali tão perto!)
E a noite lentamente a cobrir os jardins sem flores, os pátios vazios, as janelas fechadas das gaiolas de cimento, iguais e diferentes, os telhados sujos, as paredes sem cor, as varandas vazias...
(e ela olha pela janela para tudo o que não vê)
E abre a porta, sem fazer muito barulho, e sai, assim, sem saber das horas nem das convenções deste estranho pedaço de mundo, de sapatos na mão, e aventura-se pelo escuro, pelo silêncio atravessado de vez em quando pelo som de uma televisão, única janela para outro mundo destas abelhas-trabalhadoras do betão, sai da colmeia e sente o vento, frio e furioso, ocupado a varrer papéis deixados no chão, num silvo constante e lamurioso de quem não tem como entrar ou sair, vagando entre as ruas desertas de gente.
(pelo menos sinto o frio, sinto o vento, sinto!)
Longe das gaiolas de janelas fechadas, das ruas desertas de almas, das luzes que iluminam espaços ocos e projectam sombras alongadas sobre os seus passos, enterra os pés na areia e caminha. Um pé pela areia seca outro na areia molhada e fria. E sorri.
(porque entre as estrelas e o mar está só, mas nunca sozinha)