- - - - - A estrada - - - - -
Setembro 03, 2008
A estrada estendia-se sinuosa ainda que dela se avistassem apenas laivos de riscos brancos, como num filme a preto e branco antigo se distinguem falhas na pelicula por fugazes salpicos de luz.
Aqui e ali apareciam-lhe rostos familiares, hologramas projectados por uma infernal máquina invisivel que parecia persegui-lhe a vida com imagens desencantadas nos mais profundos baús de memórias, há muito enterrados e até agora corajosamente esquecidos.
Cumprimentava, com um discreto aceno de cabeça e um sorriso vago as caras que a faziam lembrar momentos cálidos, leves, pertença de outra dimensão e de outro espaço que não este, onde aliás não sabia muito bem porque estava, mas a estrada não a cansava, ainda que parecesse não levar a lugar nenhum e, de vez em quando lhe apresentasse rostos de que se desviava com um franzir de sobrolho, embora ficasse a pensar de onde e como e quando e porque lhe apareciam aquelas pessoas agora, a meio de um caminho tão agradável, ainda que escuro e algo misterioso. As imagens surgiam e desvaneciam-se como fogo-de-artifício, primeiro leves traços esbatidos de luzes coloridas, depois imagens brilhantes e expressivas, finalmente esmorecidas visões que se desfaziam em nada no breu que as devorava.
De ora em tanto era surpreendida por uma chegada mais vigorosa, fruto de uma lembrança recente ou de algum episódio marcante, mas da mesma forma que as outras, também estas imagens se desvaneciam, deixando lugar apenas à penumbra disfarçada de riscos brancos que pareciam indicar-lhe sempre a direcção da estrada. Batia-lhe no entanto o coração mais depressa, formando um eco no silêncio vazio da noite sem fim, quando um destes fantasmas a transportava sem aviso para outros tempos e outras paragens, para outras estradas, outros mares, e a depositava de novo repentinamente neste fio de estrada sem margem. Mas também o som se calava, afastando-se devagar com o vento que soprava do nada, sem direcção e sem rumo, embalando-lhe a lenta caminhada.
Depois de rever os rostos da sua história, uns sorridentes, outros acabrunhados, uns hesitantes, outros mal-encarados, verfuriosos ou carrancudos, voltava a fechá-los no baú, e mesmmo que quisesse revê-los estavam, desta vez, para sempre apagados.
Ao fundo da estrada o livro da vida, calmamente deliciado, ia desfolhando ao sabor do vento páginas que a traziam inevitávelmente ao ultimo capítulo, ainda por escrever, mas já resenhado.